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Fê Lemos e o início do Capital Inicial, a banda que marcou o rock de Brasília

12 de junho de 2015, 16h20, por Amanda Ramalho
Henrique Bérgamo

Era um domingo. Especificamente um final de tarde com uma temperatura agradável. A entrevista foi em um hotel, no centro de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. Assim que subi as escadas, da calçada para dentro, já o avistei pelas janelas. Pontual! Ele estava sentado em uma poltrona, segurando um jornal, mas com um olhar atento à TV que exibia um clássico. Cumprimentei o recepcionista, me direcionei para ele com um:  "Olá! Cheguei atrapalhando!?". Meio pergunta, meio afirmação. Apresentei-me. Dando uma resposta suave, me estendeu a mão e disse: "Tudo bem, sou flamenguista".

Enquanto o pessoal ajeitava câmeras, luzes para fotos, fomos trocando ideias. Educadamente ele pediu uma cerveja. Conversou com os meninos sobre futebol, riu quando um deles se mostrou indignado pelo gol sofrido. Ok, estávamos prontos para começar!

Felipe Lemos, ou melhor, Fê Lemos! Baterista e fundador da banda Capital Inicial e da extinta Aborto Elétrico, liderada por Renato Russo. Aos 52 anos, o músico parece bem mais jovem do que a idade que carrega. Espírito jovem. Ele não hesita e já começa a me contar como foi que a música o cativou.

Fê Lemos: Eu tinha cinco anos de idade e ouvia rádio AM, que tocava em todas as residências. Me lembro que ouvi duas músicas: "Venus" e uma do Baden Powell, "Lapinha". São as primeiras recordações de músicas que eu tenho. Depois comecei a ouvir os compactos dos meus pais e descobri Beatles, Simone Et Edgar Funkel. Com os Beatles mergulhei meio que de cabeça nessa história de música e do rock.

Henrique Bérgamo

E a sua primeira bateria? Quando comprou?
Fê Lemos:
Aos 14 anos! Vendi a minha bicicleta e comprei. Meu pai não sabia! (sorriso tímido, típico de uma criança que fez arte).

Ele achou ruim por ter vendido a bicicleta e entrado na música?
Fê Lemos:
Nããooo! Meus pais sempre me apoiaram. Eles tinham disco de rock e nos anos 60 eles tinham os dois primeiros Rolling Stones, tinha o Sargent Peppers, Os Revolvers, o Santana... o 2º do Santana que é uma obra prima, tinham Pink Floyd... eles tinham a nata do rock internacional, além também de música brasileira.

Quando foi seu primeiro show oficial?
Fê Lemos:
Com 14 anos eu já estava com a minha bateria e logo comecei a tocar com dois amigos meu da Colina, um tocava baixo, outro guitarra e a gente fez "As Colinas band". Tocávamos temas que o guitarrista inventava, tudo era instrumental, não tinha vocal. Aos 14  entrei na escola de música de Brasília e tive uma experiência inusitada com o compositor Péricles Cavalcanti, um carioca, que estava com um show, em Brasília e precisava de um baterista. Fiz o show com ele e foi minha primeira apresentação oficial.

Mas depois você e sua família viajaram para fora...
Fê Lemos:
Com 15 anos eu fui morar na Inglaterra, meu pai foi fazer pós-graduação. Foi lá que descobri o punk rock e quando voltei para o Brasil em 78, conheci o Renato e a gente começou o Aborto Elétrico que foi o ponto de partida do rock de Brasília.

Por falar em Renato... como era a relação de vocês?
Fê Lemos:
Éramos muito unidos, ele foi meu melhor amigo.

Há algumas historinhas de que vocês acabaram brigando...
Fê Lemos:
Não... é tudo mentira.

E o filme?
Fê Lemos:
Aaahh... ele é baseado em fatos reais. A história é que nós nos conhecemos, nos tornamos melhores amigos e fizemos o Aborto Elétrico. Tem a história do baquetada sim, eu joguei a baqueta nele, mas depois pedi desculpas. NÃO me ajoelhei!! (risos)

Eles exageraram...
Fê Lemos:
Claro... é cinema! Mas assim, o Aborto continuou por mais um ano. Acabou porque o Renato sacou que ele já estava um passo adiante. E ai ele sabia que tinha que fazer outra banda, com o nome Legião Urbana, que é todo mundo.

O que tinha de errado com "Aborto Elétrico"?
Fê Lemos:
"Aborto Elétrico? O que é? Um feto queimado?". A vovó ia ficar assustada e o Renato queria a vovó. A vovó faz parte da legião urbana, então ele já estava lá na frente.

E como ele avisou a saída?
Fê Lemos:
"Fê, eu tô fora da banda". A gente tenta continuar sem ele, mas está na cara que não tinha como continuar sem o Renato. Aí eu formo o Capital com o Loro e com o meu irmão, o Flávio.

Houve rivalidade?
Fê Lemos:
Começa a ter aquela competição quem vai fazer show onde? Era uma coisa que você ficava com inveja, mas no fundo estava torcendo pelo seu amigo, né? Nunca fomos inimigos ou deixamos de conversar. Depois veio o sucesso e para o Renato então foi uma história trágica. Quando ele foi morar no Rio, a gente em São Paulo, nós paramos praticamente de nos ver e nos vimos pouquíssimas vezes até a morte dele.

Você fez parte do boom dos anos 80 no Brasil... quais eram as maiores dificuldades de se fazer música?
Fê Lemos:
Olha, eram todas! (risos) você estava fazendo uma coisa que não era nativa do Brasil. Tinha uns grupos dos anos 70, mas eram guetos. Então quando a gente começou o Aborto, o Brasil era um país fechado, não existia importação de equipamentos musicais, tudo tinha que ser comprado aqui. Era tão difícil que o guitarrista que tocou comigo nesse começo fabricou a própria guitarra. Foi uma surpresa quando a Blitz apareceu com "Você Não Soube Me Amar", e começou ali uma revolução.

Depois de um tempo de estrada, a saída do Dinho complicou um pouco as coisas, não é?!
Fê Lemos:
Foi um período difícil, mas foi um período muito rico também. Nós encontramos um parceiro, o Murilo Lima, que vestiu a camisa. Junto com ele nós gravamos dois discos independentes, "Rua 47", de 1995, que na minha opinião é o melhor álbum do grupo em 30 anos e "Capital Inicial Ao Vivo", de 1996.

Quais foram as maiores consequências?
Fê Lemos:
Estar fora da mídia e sem uma grande gravadora. Quando você para de tocar no rádio, de aparecer na televisão, as pessoas vão esquecendo. Você para de ganhar novos fãs, os grandes eventos param de te chamar, as grandes casas fecham as portas.

Mas essa fase rendeu seu disco solo.
Fê Lemos:
O "Hotel Básico" é um projeto que começou no final dos anos 80, não tinha nem esse nome. Eu sou um baterista e baterista não faz melodia ou harmonia, faz ritmo, mas com a revolução da música digital, a própria digitalização da música em CD, permitiu que surgisse uma tecnologia que permitisse que o músico gravasse em casa. Durante os anos 90 continuei trabalhando em cima dessas composições de música eletrônica, mas procurando um caminho. Aí apareceu uma parceria com duas amigas minha, a Ariela e a Silvana, que criaram melodias, usando letras minhas em cima dessas bases e vi que era aquilo que queria fazer.

Com a volta do Dinho houve uma pausa no seu projeto.
Fê Lemos:
Em 98 o Dinho voltou pra banda e a gente conseguiu um contrato com a ABRIL. Ai eu falei: "eu não vou conseguir tocar as duas coisas ao mesmo tempo, vou focar no Capital". A gente fez o "Atrás Dos Olhos", fomos para a estrada e nisso pintou o "MTV Acústico", de 2000, que mudou as nossas vidas.

Quando voltou com o seu disco?
Fê Lemos:
Só consegui retomá-lo em 2003 quando decidi que se não começasse ali não ia começar nunca mais. Comecei ensaiar, a resgatar o material que tinha composto nos anos 90, procurei novas parcerias, resgatei as antigas e em 2005 lancei meu primeiro CD.

Por quê "Hotel Básico"?
Fê Lemos:
(Risos) Bem é uma brincadeira. Quando lancei essa ideia vivia em hotéis, minha vida se passa muito em hotéis e eu dizia que eram as bases que fazia em hotéis, mas isso era uma brincadeira. Na verdade, "Hotel Básico" é uma curtição em cima de um nome em inglês chamado Acid house. House music é a musica eletrônica que a gente conhece e acid house era o nome que era dado ao house music no final dos anos 80. O acid house era porque usava sintetizadores, tinha um timbre ácido, meio rasgado. Acid house, traduzindo para o português é casa ácida, eu como gosto de química pensei em ácido base... refleti para "casa-hotel", então hotel básico... já que tem a casa ácida eu vou ter o hotel básico e aí virou "Hotel Básico". Aiii contei o segredo. Arggghhh!!

Você divulgou esse projeto no seu blog quando a internet estava começando. Conte um pouco sobre essa era.
Fê Lemos:
Iniciei 2003 resgatando o material, 2004 foi o ano de gravação, terminei em 2005. De repente estou lá com dois mil CDs numa caixa e penso "como é que eu vou vender isso aqui?". Então lembrei "tenho uma ideia, vou fazer um blog contando dos shows do Capital Inicial, durante o final de semana e aproveito pra divulgar o meu "Hotel Básico". Não sei se eles conheceram o disco, mas eu me amarrei em blogar!  Durante cinco anos, de 2006 até 2011, escrevi todas as semanas contando histórias da estrada com um pouquinho de "Hotel Básico".

E isso virou um livro...
Fê Lemos:
Isso. O "Levadas e Quebradas", que lancei em 2012. Foi muito engraçado que uma coisa levou a outra: o disco levou para o blog e o blog levou para o livro. Quando vi o livro pronto que fui ler, e antes relendo para fazê-lo, me dei conta que não me lembrava de nada. Nós temos 30 anos de carreira, mas a gente não tem nenhum documento, nenhum filme... tudo se perdeu. Nossas memórias não são mais as mesmas.

Mas vocês pretendem fazer algo para registrar essas memórias?
Fê Lemos:
Ahh eu não vejo nenhum esforço da banda pensando sobre isso. Estou tentando voltar a blogar. Comecei a escrever alguns textos esse ano, mas de novo dei uma interrompida. Talvez em função do segundo disco, previsto para este semestre.

Esse novo projeto tem quantas canções?
Fê Lemos:
Tem 11 músicas e duas vinhetas. Esse disco é diferente do primeiro. O anterior tive quatro cantoras convidadas, entre elas a Debora Blando. Esse, "Amor Vagabundo", tenho só duas, sendo que uma, a Carol Mendes, é minha principal parceira. Juntos fizemos sete canções. Tenho mais duas com a Bianca Jordão, que é cantora da banda Lila, e tem mais três músicas onde me arrisco a cantar.

Por quê "Amor Vagabundo"? O disco fala sobre o que?
Fê Lemos:
É meio sobre o lado escuro da força: sexo, drogas e praia. Tem que ter um pouco de sol na historia né?(risos). O amor vagabundo acho que é o amor que está por aí, em muito maior quantidade do que aquele amor que a gente vê em filmes, aquela coisa de família margarina. Eu sou um escritor meio soturno. Não sou muito de jogar confete ou de falar coisas alegres ou otimistas. Sou meio melancólico, sempre falando de separações, destruição.

As mães ficarão assustadas...
Fê Lemos:
(Risos) Talvez fiquem! Mas não é um disco que conclama as pessoas a consumir nada. São reflexões sobre o tema, coisas que às vezes não são ditas, mas que faz parte da vida.

Henrique Bérgamo

Como faz pra conciliar todos os seus compromissos?
Fê Lemos:
O DJ é um hobby. Comecei a discotecar em 2009, num pub lá em São Paulo, onde toco até hoje e vem daquela coisa de quando era adolescente quando fazia fitas. Acho que vem disso, essa história de querer mostrar músicas para os outros. Isso que é legal em ser DJ.

Você se considera um DJ?
Fê Lemos:
Não me considero um DJ profissional, longe disso. Acho que os profissionais tem que ter todo o respeito. Ser um DJ exige dedicação integral para ouvir tudo o que está sendo lançado. Isso pra mim é um hobby.

Curte outros estilos além do rock?
Fê Lemos:
Descobri James Brown, a música negra e me interessei por aquilo. Pela coisa do funk, pelo ritmo ao invés só da atitude rock n’ roll. Comecei a ver que existia mais coisas que me interessavam. Vieram os anos 90 e descobri a música eletrônica. Aquilo me seduziu e, como músico, vi a possibilidade de criação que não via no rock. Mas até hoje tem certas coisas que eu não consigo me relacionar.

Por exemplo?
Fê Lemos:
O sertanejo, né?! Não o sertanejo de raiz, que ouço de vez em quando e reconheço um valor, uma história. São essas coisas modernas, dessas duplas que tem nomes bizarros, pra mim um é igual ao outro e essa música não me diz nada, não fala ao meu coração.

Você colocou um ditado em seu blog: "Sempre cruzamos os mesmos rios. Mas a água que está passando não é a mesma". O Fê Lemos de hoje está diferente do Fê Lemos dos anos 80?
Fê Lemos:
É... um pouco... acho que sou um pouco mais seguro hoje, do que era nos anos 80. Eu sempre achava que as coisas não iam dar certo, que as pessoas não iam gostar dos shows. Sempre tinha um medo, um receio... e hoje eu superei. Consigo ver o valor da gente, a história que escrevemos. Mas continuo sendo aquele punk, irreverente curioso, que quer saber o que está acontecendo. Ainda tenho essa chama, essa vontade de conhecer e de mostrar para os outros as coisas que estou ouvindo, que estou criando. Isso permanece daquele Fê Lemos.

Para encerrar, deixe um recado para quem acompanha seu trabalho na Kboing
Fê Lemos:
Primeiro obrigado por me lerem. Por acompanhar a gente por tanto tempo. Fico sempre tão feliz quando alguém aparece lá com o meu CD para dar um autógrafo ou com o livro. Realmente me sinto honrado. Acho que devo todo o respeito por essas pessoas, por elas se permitirem gastar um pouco do seu precioso tempo pra ouvir ou pra ler alguma coisa que escrevi ou que o meu grupo fez. Só posso dizer obrigado galera e não vamos desistir nunca! Retroceder jamais! (Risos).

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